terça-feira, 16 de março de 2010 Tags: 0 comentários

Como funcionam os monstros

Os monstros vivem na nossa imaginação, como em 'Onde vivem os  monstros, ou eles existem mesmo?
Divulgação
Os monstros vivem na nossa imaginação, como em 'Onde vivem os monstros, ou eles existem mesmo?
Embora o nome original seja diferente (“Where the wild things are”, algo como “Onde as coisas selvagens estão”), o título brasileiro do novo filme do diretor Spike Jonze, Onde vivem os monstros [adaptação do livro de mesmo nome do escritor americano Maurice Sendak, de 1963] , levanta uma questão interessante, ainda que aparentemente irrelevante para os céticos de plantão. Ora, os monstros vivem na imaginação, principalmente na imaginação das crianças, eles diriam. Mas pergunte a eles por que os monstros estão presentes em todas as culturas e sociedades humanas de todos os tempos, ou pergunte por que razão os monstros do mundo inteiro têm características parecidas, e a resposta não virá na ponta da língua.

Os monstros na verdade são um assunto complexo e, assim como os heróis, dizem muito sobre nós, seres humanos. Tão antigas quanto nossa própria história, as histórias de monstros fazem parte do medo de uma espécie que ainda não subjugou a natureza totalmente, mas que pretende fazer isso através da lógica e do conhecimento.

A palavra vem do latim monstrum e etimologicamente significa “mostrar” ou “advertir”, e também “segredo divino”. Algumas interpretações vão mais longe e traduzem monstrum como “aquele que adverte”, ou “aquele que revela”.

Mas qual é a razão desses significados? Mais importante do que isso: de onde afinal vem nosso medo inconfesso desses seres imaginários?

A origem do medo de monstros

Monstros que viveriam em águas profundas, como o kraken,  estão  entre os maiores medos do ser humano
Reprodução / Domínio Público
Monstros que viveriam em águas profundas, como o kraken, retratado na pintura Colossal Octopus, de Pierre Denys de Montfort, estão entre os maiores medos do ser humano
Nós tememos os monstros, de maneira geral, porque nossos medos são universais. Os medos mudam com as experiências, é verdade, mas existem aqueles que, segundo a demanda evolutiva, são passados na carga de informações de nosso DNA. Pesquisas realizadas em escolas de Chicago, por exemplo, mostram que os maiores medos das crianças são leões, tigres e cobras – perigos inexistentes naquela cidade.

Em seu livro "Como a Mente Funciona", o cientista cognitivo Steven Pinker descreve os medos que espontaneamente desenvolvem-se nas crianças de até cinco anos de idade: aranhas, escuridão, cobras, águas profundas. Como Pinker deixa claro, todos esses temores são objetos fóbicos clássicos. Temores que, quando não devidamente superados na infância, acompanham as pessoas em sua fase adulta na forma de fobias. Uma resposta biológica para a manifestação da cultura do monstro em todas as sociedades é que ela incorpora esses medos inatos – por isso o bestiário universal possui tantos exemplos de serpentes enormes que habitam as profundezas do mar ou de um lago (medo de cobras e águas profundas), de aracnídeos gigantes (medo de aranhas) ou de monstros que vivem em cavernas profundas ou que apenas atacam durante a noite (medo do escuro).

“A crença em monstros é realmente evolutiva e adaptativa. Nós temos medo de cobras e aranhas certamente não porque elas são grandes e podem nos atacar, mas porque geralmente são venenosas. Então esse medo nos leva a evitar esses bichos, o que provavelmente salvou vidas e se tornou impresso geneticamente”, concorda o antropólogo norte-americano David Gilmore, especialista no estudo dos monstros.

Quem tinha medo  de ser comido no mar antes da exibição do filme 'Tubarão'?
Reprodução
Quem tinha medo de ser comido no mar antes da exibição do filme 'Tubarão'? Ele mexeu com vários dos nossos medos mais profundos
Mais do que o temor de ser envenenado, porém, o medo primitivo que subsiste mais intensamente em qualquer homem ou mulher, de qualquer idade e sociedade, é o de virar refeição de outro animal. Isso é facilmente compreensível quando se tem em mente que grandes feras devoradoras de carne dividiram o espaço com seres humanos durante a maior parte da história. Essas bestas fizeram parte da formação psicológica do Homo Sapiens e de sua identidade como espécie. Predadores como ursos, tigres, leões, tubarões e crocodilos eram tão importantes para nossos antepassados que estiveram inclusive presentes em sistemas espirituais.

Como escreveu o americano David Quammen em seu livro "O Monstro de Deus", “entre as formas mais primitivas de autoconsciência humana estava a consciência de ser carne”. Não é muito difícil perceber o reforço dessa percepção e ansiedade míticas em monstros como o gigante devorador de homens Grendel, do poema épico anglo-saxão Beowulf, ou nos predadores da série Alien. A mensagem por trás de histórias como essas é clara: existe algo muito pior do que simplesmente ser morto; é ser devorado.

Dessa forma, os monstros estão relacionados com sentimentos que refletem no íntimo de nossa espécie. Sensações e medos que foram fundamentais para a evolução humana. Em "The Others: How Animals Made Us Human" (“Os outros: como os animais nos fizeram humanos”, sem tradução para o português), o ecólogo e filósofo Paul Shepard escreveu sobre a possível metamorfose de predadores selvagens em monstros na psique humana: “Nosso medo noturno de monstros provavelmente tem suas origens nos princípios da evolução de nossos ancestrais primatas, cujas tribos foram desbastadas por horrores cujas sombras continuam a elicitar nossos gritos de macaco em teatros escuros”.

Monstros e heróis

O Feiticeiro,  pintura encontrada nas cavernas Trois Frères, na França, é a primeira  representação de monstro da humanidade
Domínio público
O Feiticeiro, pintura encontrada nas cavernas Trois Frères, na França, é a primeira representação de monstro da humanidade
Essa provável transformação de feras devoradoras em monstros parece ter sido completada no final do período paleolítico, depois que os humanos descobriram a autoexpressão na forma de arte e a um passo do início da civilização. Um indício dessa tese é a famosa pintura chamada de “Feiticeiro”, encontrada na caverna Três Irmãos (Trois Frères), no norte central dos Pirineus. Pintada entre 12 mil e 15 mil anos atrás, a imagem é considerada por muitos estudiosos a primeira representação de monstro da humanidade.

Alguns milênios depois, com o surgimento da escrita, os monstros deixaram as cavernas pré-históricas e os contos e tradições orais e migraram para os textos mitológicos da Antiguidade. Um dos primeiros exemplos ao qual temos registro é Humbaba (rosto repleto de intestinos retorcidos, hálito de fogo e mandíbulas mortíferas), descrito no poema babilônico de Gilgamesh, considerado a primeira grande epopeia da humanidade, com versões datando de cerca de 2.000 a.C.. O poema narra a luta e vitória do herói Gilgamesh contra essa espécie de demônio. A batalha é um dos primeiros encontros arquetípicos entre herói e monstro, mas está longe de ser o último. A lista de duelos míticos é longa, com exemplos de inúmeras sociedades: Marduk contra Tiamat (mar de água doce que se transformou em dragão depois que Ea, deus da Terra e da água matou e filho de Tiamat matou Apsu e Mummu), entre os antigos babilônios; Ninurta contra Anzu, na civilização suméria; Hércules contra Cérbero (o horrível cão de três cabeças que Hércules tinha de capturar como parte de suas 12 tarefas), entre os gregos.

O antropólogo David Gilmore nota inclusive que muitos mitos de criação começam com a existência de algum monstro que precisa ser derrotado antes mesmo de os humanos poderem emergir da escuridão e povoarem o recém-criado Universo. O estudioso fez uma longa pesquisa sobre os monstros de inúmeras culturas e escreveu o livro "Monsters: Evil Beings, Mythical Beasts, and All Manner of Imaginary Terrors" (“Monstros: seres do mal, bestas míticas e todas as formas de terrores imaginários”, sem tradução para o português), no qual nota um surpreendente padrão entre os seres imaginários de todo o mundo.

Antigo vaso grego mostra o herói Hércules brigando com o cão de  três cabeças Cérbero
Bibi-Saint Paul / Wikimedia Commons
Antigo vaso grego mostra o herói Hércules brigando com o cão de três cabeças Cérbero

Na obra, Gilmore descreve uma porção de monstros encontrados no imaginário de diversos povos e sociedades. Indígenas do Canadá, como as tribos Ojibwa, Cree e Saulteaux, por exemplo, acreditam em um ser chamado Windigo, que tem um coração de gelo e devora humanos. No estado norte-americano de Nova York, os Iroquois são aterrorizados por criaturas conhecidas como “gigantes de pedra”, demônios que se escondem em florestas e comem caçadores desprevenidos. No Sul dos Estados Unidos, os Cherokees temem a uktena, uma terrível serpente aquática.

O windigo,  monstro da cultura indígena, tem coração de gelo e devora humanos
Reprodução / Norval Morrisseau
O Windigo, monstro da cultura indígena, tem coração de gelo e devora humanos
A lista não acaba. Entre os pigmeus do Congo, há uma espécie de dinossauro comedor de gente chamado Mokele-Mbembe. No Quênia, Nandi, um monstro parecido com um urso, também devora humanos. No Tibete e no Japão antigos, há incontáveis mitos e histórias de monstros que precisavam ser derrotados por heróis, caso contrário toda a sociedade local de um certo período seria exterminada. Na América Latina, os maias acreditavam em Tlacahuelpa, um ogro gigante que comia crianças e às vezes adultos. Os astecas, por sua vez, falavam de serpentes demoníacas gigantes que atacavam as pessoas.

Apesar das distâncias geográficas e temporais, todos esses monstros possuem grandes semelhanças. Uma das principais é que eles geralmente vivem na periferia de onde se encontram os humanos: nas montanhas que circundam uma cidade, nas florestas ou desertos em volta dela, dentro dos rios que a limitam. Além disso, eles são sempre muito violentos em relação a nós, humanos. Para completar, são famosos comedores de carne humana. E isso em todo o mundo e em qualquer época. “Até onde a antropologia pode nos dizer, mesmo os mais ‘primitivos’ caçadores e coletores da pré-história tinham ogros ou monstros imaginários em seu folclore e tradições orais. Eu não consigo pensar em nenhuma cultura que não possua ‘monstros’ em seu bestiário mitológico”, afirma Gilmore.

O fato de os monstros serem quase sempre violentos em relação a humanos e adorarem nossa carne é facilmente explicado pela já comentada lenta transformação de animais predadores nessas criaturas imaginárias. A usual localização dos monstros nas periferias igualmente parece ser uma ferramenta evolutiva para assegurar a sobrevivência da nossa espécie. “Nós humanos tendemos a povoar lugares desconhecidos e perigosos com demônios e ogros, o que nos dá razão para evitar esses locais”, explica o antropólogo.

Lendas dos antigos gregos

Odisseu serve aos caprichos  do ciclópe Polifermo, antes de cegá-lo
John Flaxman / Domínio público
Odisseu serve aos caprichos do ciclópe Polifemo, antes de cegá-lo
Essa característica é particularmente ilustrativa nos mitos e lendas dos antigos gregos. Personagens importantes dessas narrativas, os monstros gregos geralmente vivem em lugares longínquos e exóticos, representando o desconhecido, o medo e a dor que os heróis das grandes aventuras precisam confrontar e superar. “Na maioria das vezes esses heróis vinham restabelecer o equilíbrio de cidades da Grécia que estavam sendo ameaçadas por monstros, que, por sua vez, sempre representavam o diferente, o estranho”, conta o professor Donaldo Schüller, especialista em língua e literatura grega e tradutor de clássicos como "Odisséia" (Homero), "Antígona" (Sófocles) e "O Banquete" (Platão).

A noção de diferente e estranho, no caso, era percebida no aspecto físico dos monstros, que geralmente destoavam da aparência humana e eram inspirados na diversidade da natureza, podendo ser uma mistura de vários animais: mamíferos, aves, seres marinhos, répteis. Essa seria outra grande semelhança entre os monstros de todo o mundo: eles em geral são figuras híbridas e grotescas, combinando homem e animal, como o minotauro, ou apenas diferentes espécies animais. Algumas dessas características horrendas que mais se impregnaram no imaginário popular foram a cauda e o pescoço compridos, geralmente em formato de serpente, que chegaram mesmo a escapar dos mitos e povoar as cartas náuticas dos cartógrafos das Idades Média e Moderna.

A luta de Teseu  com o minotauro (monstro metade homem, metade touro) , representada em  figura pintada em cerâmica do século 6
Domínio público
A luta de Teseu com o minotauro (monstro metade homem, metade touro) , representada em figura pintada em cerâmica do século 6
Ainda na Grécia Antiga, o professor Schüller nota que a palavra equivalente a monstro era “teras”, que pode ser interpretada como um sinal enviado pelos deuses ou uma advertência para um perigo que poderia ocorrer – ou seja, o mesmo significado de “advertência” do monstrum latino, termo de origem diferente. Isso tem uma explicação: frequentemente os monstros surgem quando uma determinada sociedade está atravessando um período histórico conturbado ou uma mudança importante de valores. A incerteza e o medo do desconhecido, então, são personificados na figura do monstro – ou precisamente na ausência dessa figura.

Foi assim com o último herói da Idade Média, Dom Quixote, que saiu pelo mundo para caçar gigantes mas em vez destes só encontrou moinhos de vento. Na saga humorística escrita por Miguel de Cervantes no início do século 17 não há monstros. Como assinala Ortega y Gasset em "Meditações sobre o Quixote", a história do cômico cavaleiro foi criada numa época em que surge uma interpretação mecanicista do mundo, nos primórdios da filosofia moderna e da chamada “Era da Razão”. Sem monstros, o cavaleiro vê-se então lutando contra um ambiente duro, que não corresponde mais à busca do herói clássico.

O monstro dentro dos humanos

Frankenstein, um dos monstros criados pelos humanos, é retratado  no livro de Mary Shelley
ComoTudoFunciona
Frankenstein, um dos monstros criados pelos humanos, é retratado no livro de Mary Shelley
Do mesmo jeito que há herói sem monstro no livro "Dom Quixote de La Mancha", também surgem livros de monstro sem herói no decorrer dos séculos seguintes – principalmente a partir do final do século 18, com o Romantismo. Os monstros dessa nova literatura não mais existiam simplesmente para serem vencidos ou destruídos. Eles eram projeções distorcidas de nós mesmos, e, apesar de continuarem representando tudo aquilo que repudiamos e tememos, possuíam características inconfundivelmente humanas.

Esses monstros ou eram criação humana, como a criatura de "Frankenstein" (Mary Shelley); ou faziam parte dos homens, como em "O Médico e o Monstro" (Robert Louis Stevenson); ou eram o próprio homem, como em "A Metamorfose" (Franz Kafka). E, a exemplo do clássico de Cervantes, cada uma dessas e de outras obras famosas nos apresentam monstros que se encaixam no significado original de “advertência” do termo.

Em "A Metamorfose", por exemplo, o caixeiro-viajante Gregor Samsa se descobre transformado num inseto monstruoso ao acordar em casa numa certa manhã. Em pouco mais de 100 páginas, Kafka conta a rápida história de alienação e abandono ao qual Samsa se vê mergulhado, até morrer ignorado pela família e pela própria sociedade da época. Seria uma “advertência” à impessoalidade do mundo contemporâneo, que poderia gerar uma “desumanização” dos seres humanos.

Monstros criados pela ciência

O filme japonês Godzilla  mostra um monstro criado pela ciência
Reprodução / japan-zone.com
O filme japonês Godzilla mostra um monstro criado pela ciência
No entanto, mais comum que uma relação com o lado social ou existencial da sociedade é a associação entre monstros e ciência, iniciada com a literatura de terror da era vitoriana, na Inglaterra do século 19, e grandemente aprofundada pelo cinema. Frankenstein, O Médico e o Monstro e A Ilha do Doutor Moreau (este último do escritor inglês H.G. Wells) são obras em que a ciência não apenas tenta compreender os monstros como acaba por criá-los. O pecado humano é ir além das fronteiras do conhecido, e nossa tentativa de submeter as leis da natureza torna-se nossa própria destruição.

Os filmes pós-Segunda Guerra Mundial com monstros gigantes, que geralmente são explicados como consequências da era nuclear, fazem parte dessa tradição. Godzilla e afins nos remetem então ao significado original da palavra monstro: aquele que alerta. O mau uso da tecnologia e a viagem ao desconhecido são caminhos que podem ocultar monstros, estejam eles no espaço exterior, estejam eles no microcosmo do nosso próprio planeta.

Com a grande expansão do conhecimento geográfico no século passado, graças a tecnologias como o satélite, o radar e o sonar, nossos monstros mudaram de lugar. Deixaram de habitar as geleiras, como nos livros do norte-americano H. P. Lovecraft, ou os lagos profundos da Escócia, como o querido monstro do lago Ness. Eles agora habitam outros planetas, e, assim como as serpentes nas cartas náuticas, estão apenas esperando que nossas naves um dia cheguem lá (o que acontece na série "Alien"). Ou se escondem num universo tão desconhecido quanto o espaço cósmico: o mundo dos micróbios. Nos filmes Extermínio (28 Days Later, 2002), Extermínio 2 (28 Weeks Later, 2007) e Eu sou a Lenda (I'm the Legend, 2007), os morto-vivos, zumbis ou vampiros, como se queira chamá-los, são criados por uma epidemia de vírus. Da escala interplanetária à microscópica, os monstros estão sempre lá, naquele lugar em que não podemos enxergar.

Cena do filme  'Extermínio'. Vírus transforma a humanidade em zumbis comedores de  gente
Divulgação
Cena do filme 'Extermínio'. Vírus transforma a humanidade em zumbis comedores de gente
No caso dos alienígenas, é revelador perceber que essas criaturas – tal como a imagem mais famosa que temos delas hoje, a do humanóide baixinho, cinza e cabeçudo – começaram a aparecer no imaginário humano apenas no final do século 19. Ainda que existam indícios de que povos antigos tenham acreditado na existência de seres de outro planeta e especulações sobre essas criaturas possam ser encontradas em obras da Idade Média, foi somente com o desenvolvimento da astronomia moderna que eles deixaram de estar ligados à religião e ao sobrenatural – a noção de ser extraterrestre no contexto antigo, então, estaria muito próxima da ideia de deuses e demônios. Da mesma forma, a aparição moderna de OVNIs e as primeiras investigações oficiais desse fenômeno só tiveram início durante a Segunda Guerra, com testemunhos equivocados de aeronaves dos países do Eixo por parte de pilotos dos países aliados. Logo em seguida, a paranoia se espalhou depois que um piloto civil americano disse ter visto um estranho objeto voador durante o verão de 1947.
O filme 'Guerra dos Mundo' retrata alienígenas como monstros  invasores e destruidores da humanidade
Divulgação
O filme 'Guerra dos Mundos' retrata alienígenas como monstros invasores e destruidores da humanidade
Nos anos 50, no contexto dos avanços tecnológicos secretos e do fantasma da hecatombe nuclear da Guerra Fria, também ganhou força, principalmente nos Estados Unidos, o temor das invasões alienígenas. Livros como "Os Invasores de Corpos", que deu origem a três versões cinematográficas (1956, 1978 e 1993), se tornaram grandes sucessos por terem incluído uma roupagem ideológica (capitalismo x comunismo) ao assustador gênero iniciado com "A Guerra dos Mundos", de H. G. Wells.

Depois, foi a vez de o horror de uma possível guerra biológica entre as duas potências mundiais passar a povoar nossos pesadelos, o que piorou com a escalada do terrorismo mundial nos últimos anos. A criação e o uso de vírus como potenciais armas de destruição em massa é uma ideia atemorizante não só porque os vírus representariam necessariamente morte certa, mas porque poderiam deixar sequelas ou transformar os humanos em verdadeiros monstros – e é nessa fonte que bebem os já citados Extermínio e Eu sou a Lenda.

Isso tudo é ainda mais perturbador se levarmos em conta que desde sempre nossa espécie tem enfrentado assustadores casos de epidemias causadas por vírus ou bactérias que eventualmente deixavam milhares ou milhões de pessoas desfiguradas ou seriamente doentes enquanto não morriam, como nos surtos de peste bubônica na Idade Média e nos ataques do Ebola na África contemporânea.

Mais recentemente, uma séria candidata no terreno do microcosmo a povoar nosso medo pelo desconhecido é a nanotecnologia – o autor americano de best-sellers de ficção científica Michael Crichton chegou a lançar um romance sobre o tema há poucos anos, "Presa", no qual uma experiência científica dá errado e uma porção de microrrobôs que podem se autorreproduzir começam a eliminar todos à sua volta.

Mas temos que admitir que os monstros não evocam apenas medo puro e primitivo. Os seres da animação Monstros SA (2000) e o ogro de Shrek (2000) são ótimos exemplos. Eles não dão sustos, pelo contrário, nos fazem rir. Os monstros, então, podem existir não apenas como um vestígio evolutivo, mas como alegorias subliminares.

Monstros invisíveis da sociedade moderna

A sociedade  moderna tem seus monstros invisíveis, como o terrorismo, a criminalidade  e a imigração
National Park Service
A sociedade moderna tem seus monstros invisíveis, como o terrorismo, a criminalidade e a imigração
O espanhol Seve Calleja, professor de letras e literatura do Instituto Miguel de Unamuno de Bilbao e autor do livro "Desdichados Monstruos" (algo como “Monstros desafortunados”, sem tradução para o português), sustenta que na maioria das vezes os monstros nada mais são do que o “outro” com que nos deparamos em nosso convívio social, quando esse “outro” não está de acordo com nossos padrões – físicos, comportamentais ou ideológicos. “A feiura do monstro ressalta nossa beleza. E por isso nós precisamos dele, porque sua deformidade confirma nossa aparente normalidade, e sua perversão destaca nossa bondade. Quando ele não existe por perto, o projetamos em um animal, em um inimigo, no estranho ou em qualquer outra coisa, ainda que algumas vezes esse ‘outro’ se esconda em nós mesmos”.

Além disso, novos medos e desafios surgem com o passar do tempo, o que, para o helenista Donaldo Schüller, significa novas metamorfoses para os monstros. Na Grécia Antiga e em outras civilizações, os monstros eram aquelas criaturas horrendas à espera do herói em lugares distantes. Hoje, estão dentro das cidades e podem muitas vezes ser abstratos e invisíveis. Criminalidade, imigração, terrorismo, os já citados vírus e bactérias e até problemas como o aquecimento global e a repressão do Estado estariam incluídos nessa lista. “O monstro sempre diz respeito ao que os homens desconhecem, mas o problema não é o monstro em si – é como nos portamos diante dele”, diz o professor. “Os heróis gregos resolviam isso por meio da violência, mas Platão e outros pensadores nos ensinaram que podemos ‘enfrentar’ o outro, o estranho, por meio da compreensão, da tolerância e do entendimento.”

O mítico dragão é um monstro do bem na cultura oriental, mas do  mal, na ocidental
Kai Schreiber / Creative Commons
O mítico dragão é um monstro do bem na cultura oriental, mas do mal, na ocidental
Culturas diferentes, monstros diferentes, significados diferentes. Mas e quanto àqueles monstros que aparecem nas mais variadas sociedades? Terão eles o mesmo significado cultural? Não é o que parece. Pegue-se o exemplo do dragão. No Oriente, esses seres eram em geral benévolos e representavam, entre outras coisas, a renovação, a sabedoria, o nascimento e o ciclo dos climas. Já no Ocidente, a imagem do dragão é a de um ser rabugento, que vive numa caverna deitado sobre uma pilha de ouro prestes a soltar fogo pelas ventas caso alguém tente roubá-lo. Esse é o tipo de dragão que aparece no livro "O Hobbit", de J.R.R. Tolkien, o criador da saga "O Senhor dos Anéis". Especialista erudito em textos anglo-saxões antigos, Tolkien era fascinado pelos temas épicos. Sobre esse tipo de monstro, escreveu: “Um dragão não é uma ideia qualquer. Quaisquer que sejam suas origens, em fato ou invenção, o dragão das lendas é uma criação potente da imaginação humana, mais rica em significado do que sua montanha é em ouro”.

O antropólogo David Gilmore concorda. Em sua opinião, o dragão se tornou uma imagem tão poderosa e emblemática no imaginário coletivo mundial porque é “o” monstro perfeito. “Os dragões combinam elementos de diferentes animais encontrados em todo o mundo, como aves, répteis, mamíferos e às vezes até insetos, por isso simboliza um poder além do ordinário”, explica, chamando atenção para o fato de que monstros voadores que cospem fogo já aparecem na epopeia de Gilgamesh.

Em "O Livro dos Seres Imaginários", o escritor argentino Jorge Luis Borges também comenta o fascínio que sentimos por esses monstros. “Ignoramos o sentido do dragão, como ignoramos o sentido do Universo, mas em sua imagem existe alguma coisa que se coaduna com a imaginação dos homens, e assim o dragão surge em diferentes latitudes e idades.”

Quer sejam dragões, gigantes, ogros, quer sejam alienígenas, os monstros têm sempre acompanhado a história da humanidade com suas advertências gerais a sociedades inteiras ou revelações pessoais sobre nossa natureza individual, mostrando nossas limitações e reforçando nossa coragem. Apesar disso, é irônico que seja tão difícil para nós, que os criamos, responder às perguntas que Paul Shepard se faz na introdução de "The Others": “Qual é a finalidade dessas criaturas imaginárias? Elas são realmente substitutas para animais comuns ou têm seus próprios propósitos? O que são elas, de onde vêm e o que fazem aqui?”

A resposta é inconclusiva. Até onde sabemos, o Universo é um lugar frio e vazio de vida. O planeta Terra, até agora, é a única exceção. Nossas criaturas imaginárias, nossos monstros, dão um certo colorido a esse Cosmos aborrecido. Como escreveu David Quammen no fim de "O Monstro de Deus", “a única coisa mais pavorosa do que chegar a LV-426 [o planeta do filme Alien] e encontrar um ninho de aliens, desconfio, seria chegar lá, e no planeta inexplorado seguinte, e no seguinte, e não encontrar nada”. Por algum estranho motivo, para a nossa espécie é muito mais assustadora a ideia de um mundo sem monstros do que a de um Universo cheio dessas criaturas.

Artigo Retirado:http://pessoas.hsw.uol.com.br/monstros.htm

No Response to "Como funcionam os monstros"

Postar um comentário

Visitas Online

Visitas Gerais