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Os monstros vivem na nossa imaginação, como em 'Onde vivem os monstros, ou eles existem mesmo?
Os monstros na verdade são um assunto complexo e, assim como os heróis, dizem muito sobre nós, seres humanos. Tão antigas quanto nossa própria história, as histórias de monstros fazem parte do medo de uma espécie que ainda não subjugou a natureza totalmente, mas que pretende fazer isso através da lógica e do conhecimento.
A palavra vem do latim monstrum e etimologicamente significa “mostrar” ou “advertir”, e também “segredo divino”. Algumas interpretações vão mais longe e traduzem monstrum como “aquele que adverte”, ou “aquele que revela”.
Mas qual é a razão desses significados? Mais importante do que isso: de onde afinal vem nosso medo inconfesso desses seres imaginários?
A origem do medo de monstros
![]() Reprodução / Domínio Público Monstros que viveriam em águas profundas, como o kraken, retratado na pintura Colossal Octopus, de Pierre Denys de Montfort, estão entre os maiores medos do ser humano |
Em seu livro "Como a Mente Funciona", o cientista cognitivo Steven Pinker descreve os medos que espontaneamente desenvolvem-se nas crianças de até cinco anos de idade: aranhas, escuridão, cobras, águas profundas. Como Pinker deixa claro, todos esses temores são objetos fóbicos clássicos. Temores que, quando não devidamente superados na infância, acompanham as pessoas em sua fase adulta na forma de fobias. Uma resposta biológica para a manifestação da cultura do monstro em todas as sociedades é que ela incorpora esses medos inatos – por isso o bestiário universal possui tantos exemplos de serpentes enormes que habitam as profundezas do mar ou de um lago (medo de cobras e águas profundas), de aracnídeos gigantes (medo de aranhas) ou de monstros que vivem em cavernas profundas ou que apenas atacam durante a noite (medo do escuro).
“A crença em monstros é realmente evolutiva e adaptativa. Nós temos medo de cobras e aranhas certamente não porque elas são grandes e podem nos atacar, mas porque geralmente são venenosas. Então esse medo nos leva a evitar esses bichos, o que provavelmente salvou vidas e se tornou impresso geneticamente”, concorda o antropólogo norte-americano David Gilmore, especialista no estudo dos monstros.
![]() Reprodução Quem tinha medo de ser comido no mar antes da exibição do filme 'Tubarão'? Ele mexeu com vários dos nossos medos mais profundos |
Como escreveu o americano David Quammen em seu livro "O Monstro de Deus", “entre as formas mais primitivas de autoconsciência humana estava a consciência de ser carne”. Não é muito difícil perceber o reforço dessa percepção e ansiedade míticas em monstros como o gigante devorador de homens Grendel, do poema épico anglo-saxão Beowulf, ou nos predadores da série Alien. A mensagem por trás de histórias como essas é clara: existe algo muito pior do que simplesmente ser morto; é ser devorado.
Dessa forma, os monstros estão relacionados com sentimentos que refletem no íntimo de nossa espécie. Sensações e medos que foram fundamentais para a evolução humana. Em "The Others: How Animals Made Us Human" (“Os outros: como os animais nos fizeram humanos”, sem tradução para o português), o ecólogo e filósofo Paul Shepard escreveu sobre a possível metamorfose de predadores selvagens em monstros na psique humana: “Nosso medo noturno de monstros provavelmente tem suas origens nos princípios da evolução de nossos ancestrais primatas, cujas tribos foram desbastadas por horrores cujas sombras continuam a elicitar nossos gritos de macaco em teatros escuros”.
Monstros e heróis
![]() Domínio público O Feiticeiro, pintura encontrada nas cavernas Trois Frères, na França, é a primeira representação de monstro da humanidade |
Alguns milênios depois, com o surgimento da escrita, os monstros deixaram as cavernas pré-históricas e os contos e tradições orais e migraram para os textos mitológicos da Antiguidade. Um dos primeiros exemplos ao qual temos registro é Humbaba (rosto repleto de intestinos retorcidos, hálito de fogo e mandíbulas mortíferas), descrito no poema babilônico de Gilgamesh, considerado a primeira grande epopeia da humanidade, com versões datando de cerca de 2.000 a.C.. O poema narra a luta e vitória do herói Gilgamesh contra essa espécie de demônio. A batalha é um dos primeiros encontros arquetípicos entre herói e monstro, mas está longe de ser o último. A lista de duelos míticos é longa, com exemplos de inúmeras sociedades: Marduk contra Tiamat (mar de água doce que se transformou em dragão depois que Ea, deus da Terra e da água matou e filho de Tiamat matou Apsu e Mummu), entre os antigos babilônios; Ninurta contra Anzu, na civilização suméria; Hércules contra Cérbero (o horrível cão de três cabeças que Hércules tinha de capturar como parte de suas 12 tarefas), entre os gregos.
O antropólogo David Gilmore nota inclusive que muitos mitos de criação começam com a existência de algum monstro que precisa ser derrotado antes mesmo de os humanos poderem emergir da escuridão e povoarem o recém-criado Universo. O estudioso fez uma longa pesquisa sobre os monstros de inúmeras culturas e escreveu o livro "Monsters: Evil Beings, Mythical Beasts, and All Manner of Imaginary Terrors" (“Monstros: seres do mal, bestas míticas e todas as formas de terrores imaginários”, sem tradução para o português), no qual nota um surpreendente padrão entre os seres imaginários de todo o mundo.
![]() Bibi-Saint Paul / Wikimedia Commons Antigo vaso grego mostra o herói Hércules brigando com o cão de três cabeças Cérbero |
Na obra, Gilmore descreve uma porção de monstros encontrados no imaginário de diversos povos e sociedades. Indígenas do Canadá, como as tribos Ojibwa, Cree e Saulteaux, por exemplo, acreditam em um ser chamado Windigo, que tem um coração de gelo e devora humanos. No estado norte-americano de Nova York, os Iroquois são aterrorizados por criaturas conhecidas como “gigantes de pedra”, demônios que se escondem em florestas e comem caçadores desprevenidos. No Sul dos Estados Unidos, os Cherokees temem a uktena, uma terrível serpente aquática.
![]() Reprodução / Norval Morrisseau O Windigo, monstro da cultura indígena, tem coração de gelo e devora humanos |
Apesar das distâncias geográficas e temporais, todos esses monstros possuem grandes semelhanças. Uma das principais é que eles geralmente vivem na periferia de onde se encontram os humanos: nas montanhas que circundam uma cidade, nas florestas ou desertos em volta dela, dentro dos rios que a limitam. Além disso, eles são sempre muito violentos em relação a nós, humanos. Para completar, são famosos comedores de carne humana. E isso em todo o mundo e em qualquer época. “Até onde a antropologia pode nos dizer, mesmo os mais ‘primitivos’ caçadores e coletores da pré-história tinham ogros ou monstros imaginários em seu folclore e tradições orais. Eu não consigo pensar em nenhuma cultura que não possua ‘monstros’ em seu bestiário mitológico”, afirma Gilmore.
O fato de os monstros serem quase sempre violentos em relação a humanos e adorarem nossa carne é facilmente explicado pela já comentada lenta transformação de animais predadores nessas criaturas imaginárias. A usual localização dos monstros nas periferias igualmente parece ser uma ferramenta evolutiva para assegurar a sobrevivência da nossa espécie. “Nós humanos tendemos a povoar lugares desconhecidos e perigosos com demônios e ogros, o que nos dá razão para evitar esses locais”, explica o antropólogo.
Lendas dos antigos gregos
![]() John Flaxman / Domínio público Odisseu serve aos caprichos do ciclópe Polifemo, antes de cegá-lo |
A noção de diferente e estranho, no caso, era percebida no aspecto físico dos monstros, que geralmente destoavam da aparência humana e eram inspirados na diversidade da natureza, podendo ser uma mistura de vários animais: mamíferos, aves, seres marinhos, répteis. Essa seria outra grande semelhança entre os monstros de todo o mundo: eles em geral são figuras híbridas e grotescas, combinando homem e animal, como o minotauro, ou apenas diferentes espécies animais. Algumas dessas características horrendas que mais se impregnaram no imaginário popular foram a cauda e o pescoço compridos, geralmente em formato de serpente, que chegaram mesmo a escapar dos mitos e povoar as cartas náuticas dos cartógrafos das Idades Média e Moderna.
![]() Domínio público A luta de Teseu com o minotauro (monstro metade homem, metade touro) , representada em figura pintada em cerâmica do século 6 |
Foi assim com o último herói da Idade Média, Dom Quixote, que saiu pelo mundo para caçar gigantes mas em vez destes só encontrou moinhos de vento. Na saga humorística escrita por Miguel de Cervantes no início do século 17 não há monstros. Como assinala Ortega y Gasset em "Meditações sobre o Quixote", a história do cômico cavaleiro foi criada numa época em que surge uma interpretação mecanicista do mundo, nos primórdios da filosofia moderna e da chamada “Era da Razão”. Sem monstros, o cavaleiro vê-se então lutando contra um ambiente duro, que não corresponde mais à busca do herói clássico.
O monstro dentro dos humanos
![]() ComoTudoFunciona Frankenstein, um dos monstros criados pelos humanos, é retratado no livro de Mary Shelley |
Esses monstros ou eram criação humana, como a criatura de "Frankenstein" (Mary Shelley); ou faziam parte dos homens, como em "O Médico e o Monstro" (Robert Louis Stevenson); ou eram o próprio homem, como em "A Metamorfose" (Franz Kafka). E, a exemplo do clássico de Cervantes, cada uma dessas e de outras obras famosas nos apresentam monstros que se encaixam no significado original de “advertência” do termo.
Em "A Metamorfose", por exemplo, o caixeiro-viajante Gregor Samsa se descobre transformado num inseto monstruoso ao acordar em casa numa certa manhã. Em pouco mais de 100 páginas, Kafka conta a rápida história de alienação e abandono ao qual Samsa se vê mergulhado, até morrer ignorado pela família e pela própria sociedade da época. Seria uma “advertência” à impessoalidade do mundo contemporâneo, que poderia gerar uma “desumanização” dos seres humanos.
Monstros criados pela ciência
![]() Reprodução / japan-zone.com O filme japonês Godzilla mostra um monstro criado pela ciência |
Os filmes pós-Segunda Guerra Mundial com monstros gigantes, que geralmente são explicados como consequências da era nuclear, fazem parte dessa tradição. Godzilla e afins nos remetem então ao significado original da palavra monstro: aquele que alerta. O mau uso da tecnologia e a viagem ao desconhecido são caminhos que podem ocultar monstros, estejam eles no espaço exterior, estejam eles no microcosmo do nosso próprio planeta.
Com a grande expansão do conhecimento geográfico no século passado, graças a tecnologias como o satélite, o radar e o sonar, nossos monstros mudaram de lugar. Deixaram de habitar as geleiras, como nos livros do norte-americano H. P. Lovecraft, ou os lagos profundos da Escócia, como o querido monstro do lago Ness. Eles agora habitam outros planetas, e, assim como as serpentes nas cartas náuticas, estão apenas esperando que nossas naves um dia cheguem lá (o que acontece na série "Alien"). Ou se escondem num universo tão desconhecido quanto o espaço cósmico: o mundo dos micróbios. Nos filmes Extermínio (28 Days Later, 2002), Extermínio 2 (28 Weeks Later, 2007) e Eu sou a Lenda (I'm the Legend, 2007), os morto-vivos, zumbis ou vampiros, como se queira chamá-los, são criados por uma epidemia de vírus. Da escala interplanetária à microscópica, os monstros estão sempre lá, naquele lugar em que não podemos enxergar.
![]() Divulgação Cena do filme 'Extermínio'. Vírus transforma a humanidade em zumbis comedores de gente |
![]() Divulgação O filme 'Guerra dos Mundos' retrata alienígenas como monstros invasores e destruidores da humanidade |
Depois, foi a vez de o horror de uma possível guerra biológica entre as duas potências mundiais passar a povoar nossos pesadelos, o que piorou com a escalada do terrorismo mundial nos últimos anos. A criação e o uso de vírus como potenciais armas de destruição em massa é uma ideia atemorizante não só porque os vírus representariam necessariamente morte certa, mas porque poderiam deixar sequelas ou transformar os humanos em verdadeiros monstros – e é nessa fonte que bebem os já citados Extermínio e Eu sou a Lenda.
Isso tudo é ainda mais perturbador se levarmos em conta que desde sempre nossa espécie tem enfrentado assustadores casos de epidemias causadas por vírus ou bactérias que eventualmente deixavam milhares ou milhões de pessoas desfiguradas ou seriamente doentes enquanto não morriam, como nos surtos de peste bubônica na Idade Média e nos ataques do Ebola na África contemporânea.
Mais recentemente, uma séria candidata no terreno do microcosmo a povoar nosso medo pelo desconhecido é a nanotecnologia – o autor americano de best-sellers de ficção científica Michael Crichton chegou a lançar um romance sobre o tema há poucos anos, "Presa", no qual uma experiência científica dá errado e uma porção de microrrobôs que podem se autorreproduzir começam a eliminar todos à sua volta.
Mas temos que admitir que os monstros não evocam apenas medo puro e primitivo. Os seres da animação Monstros SA (2000) e o ogro de Shrek (2000) são ótimos exemplos. Eles não dão sustos, pelo contrário, nos fazem rir. Os monstros, então, podem existir não apenas como um vestígio evolutivo, mas como alegorias subliminares.
Monstros invisíveis da sociedade moderna
![]() National Park Service A sociedade moderna tem seus monstros invisíveis, como o terrorismo, a criminalidade e a imigração |
Além disso, novos medos e desafios surgem com o passar do tempo, o que, para o helenista Donaldo Schüller, significa novas metamorfoses para os monstros. Na Grécia Antiga e em outras civilizações, os monstros eram aquelas criaturas horrendas à espera do herói em lugares distantes. Hoje, estão dentro das cidades e podem muitas vezes ser abstratos e invisíveis. Criminalidade, imigração, terrorismo, os já citados vírus e bactérias e até problemas como o aquecimento global e a repressão do Estado estariam incluídos nessa lista. “O monstro sempre diz respeito ao que os homens desconhecem, mas o problema não é o monstro em si – é como nos portamos diante dele”, diz o professor. “Os heróis gregos resolviam isso por meio da violência, mas Platão e outros pensadores nos ensinaram que podemos ‘enfrentar’ o outro, o estranho, por meio da compreensão, da tolerância e do entendimento.”
![]() Kai Schreiber / Creative Commons O mítico dragão é um monstro do bem na cultura oriental, mas do mal, na ocidental |
O antropólogo David Gilmore concorda. Em sua opinião, o dragão se tornou uma imagem tão poderosa e emblemática no imaginário coletivo mundial porque é “o” monstro perfeito. “Os dragões combinam elementos de diferentes animais encontrados em todo o mundo, como aves, répteis, mamíferos e às vezes até insetos, por isso simboliza um poder além do ordinário”, explica, chamando atenção para o fato de que monstros voadores que cospem fogo já aparecem na epopeia de Gilgamesh.
Em "O Livro dos Seres Imaginários", o escritor argentino Jorge Luis Borges também comenta o fascínio que sentimos por esses monstros. “Ignoramos o sentido do dragão, como ignoramos o sentido do Universo, mas em sua imagem existe alguma coisa que se coaduna com a imaginação dos homens, e assim o dragão surge em diferentes latitudes e idades.”
Quer sejam dragões, gigantes, ogros, quer sejam alienígenas, os monstros têm sempre acompanhado a história da humanidade com suas advertências gerais a sociedades inteiras ou revelações pessoais sobre nossa natureza individual, mostrando nossas limitações e reforçando nossa coragem. Apesar disso, é irônico que seja tão difícil para nós, que os criamos, responder às perguntas que Paul Shepard se faz na introdução de "The Others": “Qual é a finalidade dessas criaturas imaginárias? Elas são realmente substitutas para animais comuns ou têm seus próprios propósitos? O que são elas, de onde vêm e o que fazem aqui?”
A resposta é inconclusiva. Até onde sabemos, o Universo é um lugar frio e vazio de vida. O planeta Terra, até agora, é a única exceção. Nossas criaturas imaginárias, nossos monstros, dão um certo colorido a esse Cosmos aborrecido. Como escreveu David Quammen no fim de "O Monstro de Deus", “a única coisa mais pavorosa do que chegar a LV-426 [o planeta do filme Alien] e encontrar um ninho de aliens, desconfio, seria chegar lá, e no planeta inexplorado seguinte, e no seguinte, e não encontrar nada”. Por algum estranho motivo, para a nossa espécie é muito mais assustadora a ideia de um mundo sem monstros do que a de um Universo cheio dessas criaturas.
Artigo Retirado:http://pessoas.hsw.uol.com.br/monstros.htm
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